São homens demais
1.
Há um homem. Ele me ama, quase sempre. Eu o amo com a mesma frequência-quase-constância. Sei que me ama porque me faz café pela manhã, me abraça na cama ao adormecer e, para não sobrar dúvida, me diz: eu te amo. Não desfaz as palavras com os atos: as confirma. É inusitado ter em casa, noite e dia, dia e noite, um homem que me ama. Uma improbabilidade sobre a qual ergui a vida. Às vezes me espanto: há um homem aqui e ele me ama.
2.
Há um homem. Não sei se me ama, mas deveria. Quer dizer, segundo contam as histórias, um homem deve amar a filha. Não sei, conheço apenas exceções de amor cotidiano de homens por suas proles. Há um caráter etéreo, descompromissado, no amor dos pais. A regra é ausência, grito, descuido. É um homem estranho, ora monstro, ora riso; ora silêncio, ora gentileza. Uma fumaça incontida cuja forma nunca consegui firmar, mas cujo veneno respiro desde a mais completa inocência.
3.
Há um homem na rua. Não o conheço, mas o amo. É velho, tem a pequenez inédita dos homens velhos, uma fragilidade que lhe é inusitada, como um espanto de se ver encolher antes da morte. Tenho vontade de abraçar o homem. Lembra um pai que não cheguei a ter, porque só tive pai na infância. Meu pai é vivo, mas não na minha vida, portanto nunca tive pai velho. Não vi enrugar-se a pele onde eu gostava de espremer cravos. Não vi fraquejarem os músculos que nunca me impressionaram, mas tinham sua solidez. Não vi amolecer o sentimento, como costuma acontecer com os homens duros que envelhecem. Murcham feito balão esvaziado, compreendendo - imagino eu - a cada ano que perdem, como causaram o esgarçar dos amores. Tenho vontade de abraçar o velho na rua, infantilizado por sua súbita fragilidade, perdoá-lo todo porque está a morrer-se e pouco lhe resta do que mais era ele: sua virilidade. Tenho vontade de abraçar o homem e lavar os seus estragos com o meu choro, capaz de abarcar também suas dores.
4.
Há homens demais. Às vezes os desejo, mesmo feios, mesmo burros ou simples. Quero descobrir como beijam, como percorrem o corpo de uma mulher, se sabem encontrar seus prazeres, se choram depois do sexo, se têm taras estranhas, se já souberam amar. Outras vezes eu os odeio, tenho repulsa por sua multidão ruidosa e brusca, cheia de certezas arrogantes e interrupções gratuitas e pernas arreganhadas e falas grossas e violências escancaradas. Não é que há homens demais, é que são homens demais.
5.
Há um pequeno homem. Uma quase-homem. Um menino. Eu não o amo apenas. Eu o devoro de amor, inundo cidades povoadas, inauguro continentes inteiros em que a língua franca é amor. Um filho imprevisto. Com vinte e cinco anos me vi mãe sem qualquer preparo. Um susto que me tirou o fôlego durante quase um ano, que me fazia acordar com um palpitar desesperado de ser tão completamente responsável por um ser que não era eu. Hoje o pequeno homem já está quase adolescente e eu às vezes levo caixotes com as mudanças que se anunciam. Ralo os joelhos na areia da pré-adolescência. Amor é uma palavra tímida para o que é mãe.
6.
Há um homem. Não pude amá-lo porque não o tive. Morreu antes de eu nascer. Sergipano, socialista, inteligente e bonito. Teria sido meu avô. Não foi. A morte precoce ecoa ruídos da ditadura, que o impediu de continuar, de alcançar suas potências. Um rasgo sangrento numa vida promissora. Há homens que deveriam ter sido.
7.
Há uma mulher. Eu a amei com a completude da infância. Era minha casa, minha certeza, meu colo. Eu me esparramava no conforto do seu amor, único, indubitável. Uma avó sabe amar. Os cabelos pintados de louro, as unhas feitas, o riso sempre à beira dos lábios, as bijuterias e ombreiras completando seu corpo gordo e delicado. Ela se sentava ao meu lado no sofá e juntas cantávamos, eu com meu pianinho de madeira, ela fingindo saber tocar o violão. Essa mulher, com seu apartamento que era uma extensão dela própria, inseparável da memória que tenho em mim, me ensinou como se sonha. Sem sair do sofá, ela abriu as portas do meu mundo, expandiu as fronteiras do possível. Sua cristaleira era o bem mais precioso da casa. Eu era o auge da cristaleira.
8.
Há um homem. Ele se entrega ao amor feito água que se derrama após o ceder da barragem. As crianças ficam enxarcadas, nunca dá tempo de secar. Como ele aprendeu a amar assim? Eu não sabia que existia esse tipo de amor, caudaloso e certeiro, em um pai. Foi sorte. Há um homem, pelo menos um, que sabe amar.
9.
Há uma mulher no espelho. Há dias em que eu a amo, outros em que não a tolero. É todas as mulheres que vieram antes; suas falhas, suas grandezas. Será ainda muitas outras.